ALVES E CIA - VIII

VIII

Então começou para Godofredo uma existência abominável.

Tinham passado semanas e Machado voltara, ocupava agora, como sempre, a sua carteira no gabinete de reps verde. Godofredo temera sempre aquele encontro, não julgara possível que eles pudessem passar dias, um ao lado do outro, manejando os mesmos papéis, tocando-se pôr mil interesses comuns, com a idéia daquele dia nove de julho, aquele encontro sobre o sofá. Mas pôr fim tudo se passara convenientemente, e não havia atritos.

Na véspera da sua chagada Machado escrevera-lhe uma carta, polida, quase humilde, em que se percebia mesmo certo tom de tristeza; dizia-lhe que ia voltar, que no dia seguinte apareceria no escritório, e que esperava que toda a idéia do passado desaparecesse nas suas novas relações, e que estas fossem sempre dominadas pôr uma respeitosa cortesia; acrescentava que compreendendo porém as dificuldades desta nova situação, ele só a aceitava pôr algum tempo para salvar a dignidade e fazer calar a maledicência, reservando-se o deixar a firma logo que o pudesse fazer sem escândalo. Nesse dia, Godofredo foi mais cedo ao escritório, e fez uma coisa hábil: disse ao guarda-livros, diante do caixeiro, que houvera entre ele e o sr. Machado certas desinteligências, e que as suas relações tinham sofrido modificações.. Estas palavras vagas tinham pôr fim evitar a surpresa, os comentários do guarda-livros, quando os visse agora, defronte um do outro, secos, corteses, e tratando-se pôr senhor Alves e senhor Machado. O guarda-livros murmurou que sentia muito; e dali a instantes Machado apareceu. Foi um momento desagradável. Durante todo o resto do dia mal puderam dar atenção ao que faziam: e o menor movimento do Machado, o puxar do lenço, um passo ao soalho despertavam em Godofredo toda a sorte de lembranças desagradáveis. Uma ou duas vezes atravessou-o um desejo violento de o vituperar, acusá-lo de todas as tristezas que agora enchiam a sua vida: mas conteve-se, apenas se vendo impotente para engolir um ou outro suspiro.

A atitude do Machado foi respeitosa e triste. E quase não trocaram uma palavra. O quer que fosse de angustioso pesava no ar. E o estúpido do caixeiro tornava todo este embaraço mais saliente, teimando em andar em bicos de pés, como numa casa onde há um morimbundo.

Outros dias iguais repetiram-se; mas pouco a pouco a presença do Machado deixou de impressionar Godofredo. Já o podia ver sem pensar no sofá. Estabeleceu-se uma rotina. O que entrava pôr último dava os bons-dias polidos ao outro ­ e depois só falavam em assuntos de negócio; quando não havia que fazer, o Machado saía, abandonando o gabinete a Godofredo, que ficava lendo os jornais no sofá. E isto continuou regular, sem atritos, porque Machado não tinha senão, no fundo, estima pelo bom Alves, e Alves, a seu pesar, conservava um fundo de simpatia pôr aquele rapaz que quase educara. Debalde se dizia a si mesmo que fora do negócio era um traste: o simples tom da sua voz, os seus bonitos modos atraíam-no a seu pesar.

Assim foi que, quando vieram os primeiros dias de outubro, toda aquela tumultuosa agitação que se fizera na vida de Godofredo, e que o trouxera semanas como sonâmbulo, se calmou. Ludovina estava na Ericeira com o pai: e a lembrança daquele momento em que a vira no sofá amarela, que ao princípio fora no coração do pobre Godofredo como uma chaga viva que o menor movimento, o menor atrito, irritava ­ era como uma ferida ainda, mas cicatrizada, causando apenas uma dessas surdas e vagas dores a que o corpo se habitua. O choque desagradável do encontro com o Machado passara também; no escritório da rua dos Douradores estabelecera-se agora uma rotina de relações frias, corteses, toleráveis. E agora, mais calmo, Godofredo podia reparar mais, sentir mais todos os detalhes daquela vida de viúvo, que devia ser agora a sua para sempre ­ e só descobria desconforto e tristeza. Ao princípio pensara em deixar a casa da rua de São Bento, ir viver para o hotel; mas depois receou a opinião, a maledicência. Ninguém sabia que ele estava separado de sua mulher. Supunha-se que ela estava a banhos, com o pai, e que Godofredo a ia ver de vez em quando. E ele tinha pôr todos os meios de manter esta ficção. Além disso, que havia de fazer às duas criadas? Porque persistia na idéia de manter o silêncio em torno da sua desgraça, conservando sob chave, ligadas a ele pelo interesse duma boa situação, aquelas duas criaturas que a conheciam. Ficara pois em São Bento, e a sua existência, ali, era desgraçada. Um a um os confortos que ele tanto amava tinham desaparecido ­ porque as duas mulheres, sem ama que as vigiasse, tendo percebido que o senhor as não despediria, dependia da língua delas, estavam inteiramente relaxadas. A tortura do dia começava para Godofredo às nove horas. Era toda uma tortura para que lhe trouxessem água para a barba: nunca havia água quente; a cozinheira, que se levantava agora tarde, não tinha o lume aceso às dez horas. Depois era outra luta para obter o almoço, e quando vinha, feito à pressa, sem cuidado, sem vaidade, quase o enjoava. Desde agosto que todas as manhãs lhe apareciam os mesmos ovos quentes ­ ora crus, ora cozidos de todo ­ e os mesmos bifes córneos, negros, como duas liras de couro tisnado. Ele sentava-se, olhava com horror para o guardanapo sujo. Ai, onde estava o tempo em que Ludovina ela própria lhe is fazer o seus ovos quentes, pelo relógio de areia? Então havia sempre flores na mesa, e o seu Diário de Notícias e o seu Jornal do Comércio estavam ao lado do prato, ele desdobrava-os, sentindo em redor o rumor das saias dela, o calor da sua presença, o vago aroma de vinagre de toilette.

Quando voltava às quatro horas, os restos deste triste almoço ainda estavam sobre a mesa, com o molho dos bifes seco no prato, um resto de chá no fundo da chávena, - tudo sujo e triste sob o vôo das moscas. Pelo chão ficavam migalhas de semanas. Todos os dias se quebrava alguma coisa. E ao fim do mês eram contas enormes, um desperdício, um excesso absurdo de gastos. Já duas vezes encontrara homens na escada, ou visitas para as criadas. A sua roupa suja arrastava pelos cantos ­ e, quando ele se enfurecia, entrava na cozinha como uma bomba, dava berros, as duas criaturas não respondiam, fingiam uma compunção mais odiosa ainda do que uma resposta insolente. Baixavam a cabeça, davam com respeito uma desculpa absurda, depois ficavam dentro rindo, e bebendo copinhos de vinho.

Mas o pior eram as noites solitárias. Fora sempre um homem muito caseiro, que às nove recolhia, calçava os seus chinelos e gozava o seu interior. Ordinariamente, na sala, Ludovina tocava um bocado de piano; ele mesmo ia acender as luzes, com a devoção de quem prepara um altar, porque adorava a música; e vinha acabar o seu charuto, numa poltrona, ouvindo-a tocar, vendo a massa negra do seu cabelo que lhe pendia nas costas, numa graça de desalinho e de abandono. E havia certas músicas que lhe davam a sensação de Ter o coração acariciado pôr alguma coisa de aveludado e doce, que o fazia desfalecer: sobretudo uma certa valsa Souvenir d'Andalousie... Há quanto tempo ele a não ouvia.

Enquanto durou o verão, todas as tardes dava o seu passeio: mas o espetáculo mesmo das ruas trazia-lhe à memória a sua felicidade perdida. Era uma varanda aberta, com uma senhora de vestido claro tomando o fresco, que lhe recordava a sua casa deserta, onde não havia um rumor de saia; ou era ao anoitecer, uma janela deixando sair a claridade discreta dum serão tranqüilo, e donde vinham sons de piano... Ele, fatigado, com os botins empoeirados, sentia então, dum modo agudo e doloroso, a evidência da sua solidão.

Mas as noites piores eram as que passava no Passeio Público: levava-o lá o horror de estar só; mas aquela solidão entre gente, sob árvores alumiadas a gás, vendo tanto homem levando uma mulher pelo braço, era-lhe mais dolorosa que a sua sala deserta e fria, com o seu piano fechado.

Depois foi pior quando começou o inverno. Novembro foi muito chuvoso Ele voltava do escritório, e, depois do jantar ordinário que comia à pressa, ficava, com os pés nos chinelos, aborrecendo-se e errando da sala para o quarto. Nenhuma cadeira, pôr mais confortável, lhe dava a satisfação de repouso e de bem-estar; e os seus livros queridos pareciam Ter perdido subitamente todo o interesse, desde que não a sentia ao seu lado, costurando à mesma luz a que ele lia. E um pudor, um escrúpulo, uma vaga vergonha impediam-no de ir aos teatros.

Além disso uma inquietação tomava-o constantemente, desde que ela voltara da Ericeira e que a sabia ali na mesma rua, a dez minutos de caminho daquela casa onde ele sofria todas as melancolias da viuvez. Vinte vezes pôr noite, o seu pensamento fazia esse caminho, subia as escadas do Neto, penetrava na sala que ele conhecia, com a sua chaise- longue que ela se costumava sentar quando iam ver o Papá; e vinha-lhe um ciúme, um desespero pensando que a essa hora ela estaria lá sentada, com uma costura ou um livro na mão, tranqüila, sem pensar nele.

O Neto, à volta da Ericeira, viera vê-lo. E cada palavra daquele maroto fora uma punhalada. Tinham gozado muito na Ericeira ­ não viam ninguém, enfim, porque as circunstâncias da Ludovina não permitiam folias e pic-nics ­ mas tinham passado bem em família. Ludovina tomara banhos; estava forte, gorda, e nunca ele a vira com tão boa cara; tinha-se aplicado muito ao piano, e parecia resignada e de bom humor. E depois de lha pintar assim tão apetecível saíra, sem dizer a palavra pôr que Godofredo ansiava ­ uma simples palavra: fazer as pazes.

Porque o desejava ardentemente. Somente não queria das o primeiro passo, pôr orgulho, pôr dignidade, pôr um resto de amuo e de ciúme. Mas entendia que Neto é que devia impor essa reconciliação ­ e começava agora a odiá-lo, vendo que ele queria conservar a filha em casa. Percebia bem. O patife não desgostava dos trinta mil réis, que lhe vinham assim todos os meses. Pensou mesmo em lhe retirar a mesada. Um sentimento de cavalheirismo impedia-lhe de o fazer.

E o que o torturava não a ter visto ainda. Debalde passava e repassava pela casa de Neto; debalde ia aos domingos à missa, à igreja dela; debalde ia passar pela casa da modista dela, uma dona Justina no largo do Carmo, com a esperança de a ver de lá sair, ou entrar. Nunca a encontrou até dois dias antes do Natal. Estava nessa manhã, numa tabacaria ao alto do Chiado, acendendo o charuto, quando se voltou, a viu pelas costas. Ficou tão perturbado, tão trêmulo, que em lugar de correr a segui-la, a vê-la, como o seu desejo reclamava furiosamente, recolheu-se para o fundo da loja, esteve ali a hesitar, a sentir bater o coração, com o ar pálido e estúpido. De repente quis vê-la ainda uma vez, mas debalde subiu, desceu o Chiado, não a encontrou; tinha-a perdido, e foi para casa com uma saudade imensa, tendo diante dos olhos toda a noite a figura alta, vestida de preto, com uma flor amarela no chapéu.

O encanto porém quebrara-se, e uma semana depois, ia descendo a Calçada do Correio, avistou-a que subia, com a irmã. Foi a mesma perturbação, o mesmo embaraça, a mesma idéia absurda de se esconder aos pulos, decidiu-se ao encontro: afirmou o passo, deu um leve puxão aos punhos, aprumou-se, marchou. E pelo canto do olho, tremendo todo, viu- a baixar os olhos e corar, perturbada também.

Foi para casa num extraordinário estado de exaltação. Sentia que a adorava, e o coração desfalecia-lhe à idéia deliciosa de a apertar outra vez nos braços. E ao mesmo tempo era um ciúme furioso e vago, ciúme dos outros homens, da rua, dos passos que ela dava, das palavras que poderia dizer a outros, dos olhares que poderia dar a outros. Queria-a para si, ali, debaixo de chave, entre aquelas paredes que eram suas, na prisão dos seus braços. E não pôde parar, em casa, saiu era quase meia-noite, foi olhar as janelas do Neto. Depois voltou, escreveu-lhe uma carta absurda, seis páginas de paixão a que se misturavam ainda acusações. Rasgou-a, ao relê-la, achando-lhe muitas palavras e insuficientemente amorosa. Não dormiu nessa noite. Via constantemente a sua bela face corar, as pálpebras baixarem-se- lhe. E estava como disse o Neto, mais cheia, mais bela. Oh, que mulher divina! E era sua, a sua mulher! Positivamente aquilo não poderia durar, aquela vida infeliz e solitária!

Todo o janeiro passou sem ele a tornar a ver ­ e a sua paixão crescia. Agora esperava um acaso que os ligasse; cada manhã imaginava que o dia não se passaria sem ele a ver, e estava decidido a falar-lhe. Uma vez já encontrando o Neto, falara vagamente nos inconvenientes daquela separação. O Neto encolhera os ombros, com um ar de melancolia e de dor paternal. Era bem triste, mas que se havia de fazer? Depois, uma noite no Murtinho tornou a falar-lhe. E o Neto disse que refletira, e que estava decidido a ir fazer com a filha uma viajata até o Minho, para evitar falatórios. Godofredo ficou assombrado, não se conteve:

- Mas não há-de ser à minha custa.

E voltou-lhe as costas, veio para casa furioso. Eram sete horas da noite, e havia um luar claro e frio. Ele chegava à sua porta, quando deu de rosto no passeio com Ludovina, que recolhia, acompanhada pela irmã. Instintivamente, desceu vivamente do passeio, afastou-se; mas logo voltou, com uma inspiração, apressou, chamou:

-Ludovina!

Ela parara, voltou-se, espantada. Estavam junto duma loja de mercearia, na luz do gás, e ficaram um defronte do outro, sem achar uma palavra, enleados, com todo o sangue nas faces. Godofredo estava tão perturbado que nem cumprimentou a cunhada, nem sequer a viu. E as suas primeiras palavras foram absurdas.

- Então diz que vais para o Minho?

E ele, numa voz atrapalhada:

Ludovina olhou-o espantada, depois olhou para a irmã.

- Para o Minho? ­ murmurou.

E ele, numa voz atrapalhada:

- Disse-me teu pai... Eu achei que era a coisa mais ridícula!... Oh, Teresinha, desculpe, que a não tinha visto... Tem passado Bem? E então tu, Ludovina, tens passado bem?

Ela encolheu os ombros:

- Assim, assim...

Ele devorava-a com os olhos, achando-a adorável, naquela capa de veludo que ele lhe não conhecia, e que devia ser nova.

- Diz que te divertisse muito.

Ela teve um sorriso amargo:

- Eu? Boa... ­ E acrescentou com um vago suspiro: - O que me tenho é aborrecido e chorado.

Um amor, uma piedade imensa invadiu-o E com a voz trêmula, quase chorando:

- Ora essa, ora essa...

Depois, acrescentou ao acaso, já num tom de intimidade, como se desde esse momento a reconciliação estivesse feita:

- Pois aquilo lá em casa não vai bem... A Margarida tem-se desleixado muito. E é verdade, que te queria perguntar... Como diabo se acende o candeeiro de escrever, que não tem sido possível pô-lo em ordem?

Era riu, Teresa também. Ela tinha percebido bem, de ora em diante era outra vez a mulher de Godofredo. Disse:

- Se queres eu lá vou ensinar a Margarida a arranjar isso.

Todo ele foi um grito de alegria:

- Pois vem, pois vem! A Teresinha pode vir também. É um instante.

E subiu adiante, galgou a escada, abriu a porta, desfalecendo de voluptuosidade ao ouvir o rumor das sais dela pela escada acima. Ouvindo vozes, Margarida tinha corrido, e ao avistar as senhoras ficou embatucada.

- Traga cá esse candeeiro de escrever... ­ gritava atarantadamente Godofredo.

Ludovina e a airmã tinham penetrado na sala de jantar e conservavam-se de pé, de chapéu, com as mãos nos regalos. Godofredo, no entanto, como parvo, correra à cozinha, depois entrara no quarto, depois precipitara-se a acender as luzes da sala das visitas, onde não havia gás. Ludovina no entanto olhava a sala de jantar, o aparador, escandalizada já daquele desleixo que ali se sentia ­ parando a contemplar indignada uma linda fruteira de cristal que tinha uma asa quebrada.

Godofredo veio encontrá-la assim.

- Ai, isso vai aí uma destruição que nem tu imaginas. Olha, vem cá dentro, vem ver, vem cá ao nosso quarto.

Ele mesmo entrou, ela teve um rubor de virgem que penetra na câmara nupcial; e, apenas entrou, ele apoderou-se dela, arrastou-a para a alcova do lavatório, e ali no escuro, violentamente, freneticamente, beijou-a pelos olhos, pelo cabelo, pelo chapéu, fartando-se da doçura que ela trazia do frio da rua.

Ela disse baixo:

- Não, não, olha a Teresa!

- Manda-a embora, eu vou levá-la ­ murmurou ele. ­ Tu ficas, amor, nunca mais nos separam.

Ela consentiu, num beijo.